No encontro de nº 60 da Confraria Reinações Caxias, o livro indicado foi um clássico da literatura juvenil brasileira "O Escaravelho do Diabo" livro esse que faz parte da coleção Vaga-Lume, coleção esta que reúne mais de 60 obras voltadas para o público infanto.
O encontro foi coordenado pelo confrade Dangelo Muller.
Pensando sobre “O escaravelho do diabo”
Dangelo Müller*
“O escaravelho do diabo”, de
Lúcia Machado de Almeida, foi originalmente apresentado aos leitores como uma
espécie de folhetim policial, publicado semanalmente na revista “O Cruzeiro”,
nos idos de 1956. Porém, pode-se dizer que a obra ganhou fama a partir de sua
publicação compilada na série Vaga-lume, em 1972, sendo produzidas desde então
27 edições. É interessante perceber que o texto da autora permanece o mesmo,
sofrendo apenas eventuais alterações das reformas ortográficas. Referências aos
bondes, à moeda corrente da época (1956) e mesmo aos costumes dão um “ar” semelhante
ao dos filmes noir, com a peculiaridade de um cenário e personagens mais
próximos do público leitor.
A
história se passa em Vista Alegre, uma pacata cidade dos anos 50, que vive os
primeiros momentos de uma eventual modernização. Há um hospital local, um
zoológico, um teatro, ruas com iluminação e calçamento, ou seja, trata-se de
uma cidade diferente da maioria das cidades brasileiras da época, constituindo
o palco perfeito para o desenrolar da trama policial e misteriosa ao estilo de
Agatha Christie.
Os
personagens do conto podem ser divididos em três classes: os protagonistas, os
eventuais suspeitos e as vítimas. Dentre os protagonistas, temos Alberto, o
estudante de medicina, que se converte em um dos investigadores dos crimes e o Inspetor
Pimentel, policial encarregado de averiguar os estranhos casos acontecidos
em Vista Alegre; entre o rol de suspeitos temos Verônica, a estudante de
música e hóspede da pensão de Cora O'Shea; Sr. Graz, um professor suíço
de Línguas, amigo de Verônica e também hóspede de Cora O'Shea; Cora O'Shea,
a irlandesa dona da pensão e mãe de Clarence O'Shea; Mr. Gedeon, um
americano representante de uma indústria de próteses e também hóspede de Cora
O'Shea; Sub-inspetor Silva, o ajudante do Inspetor Pimentel e de
Alberto, aparece pouco no livro e Elza, a copeira da pensão.
As
vítimas atacadas pelo “inseto” são Hugo, o "Foguinho", a
primeira vítima e irmão de Alberto é assassinado com uma antiga espada
espanhola cravada no peito; Clarence O'Shea, o filho de Cora O'Shea, que
morre envenenado por uma cápsula de cianureto colocada entre seus remédios; Maria
Fernanda, uma cantora lírica que é assassinada em meio a uma performance de
"Carmen", de Bizet, atingida por uma seta envenenada; um galo-da-serra,
ave de uma raça em extinção que é estrangulada até a morte e tem todas as suas
penas cor de fogo arrancadas; Rachel Saturnino, a linda filha de um
antiquário que se torna a única sobrevivente dos ataques do "inseto";
Padre Afonso, o padre da paróquia local, um homem inteligente e corajoso
que morre carbonizado durante o incêndio em sua igreja e, por fim, Mr. Graz,
que morre carbonizado junto com o Padre Afonso.
O
enredo começa com a reação de Alberto à chocante morte de Hugo. O estudante, junto com o Inspetor Pimentel, chega
até um antiquário e averigua sobre a natureza da espada. Lá, o rapaz encontra
Rachel, uma ruiva estonteante que se torna seu primeiro interesse romântico na
obra. Algum tempo depois da morte de Hugo, há um novo homicídio: Clarence
O'Shea, um menino ruivo que é envenenado de forma inusitada na qual o assassino
mistura um forte agente tóxico em meio aos medicamentos para gripe do rapaz.
Alberto começa a fazer a ligação entre o fato de seu irmão e do jovem O'Shea
também terem recebido um besouro pelo correio, como uma espécie de anunciação à
sua futura morte. O Inspetor tenta apaziguar as suspeitas do jovem estudante de
medicina, explicando que tal acontecimento pode ser meramente incidental. Ao
investigarem a pensão de Cora O'Shea, Alberto e Pimentel conhecem Mr. Graz, Mr.
Gedeon e Verônica. Alberto apaixona-se por Verônica e, a partir
deste ponto, fica dividido entre prosseguir com as investigações ou namorar com
a moça.
Pouco
tempo depois ocorre o assassinato de outra pessoa ruiva: a cantora lírica Maria
Fernanda. Em pleno palco, ela é alvejada por um espinho envenenado, projetado
por uma zarabatana. Toda incredulidade do inspetor cai por terra quando ele e
Alberto descobrem que, pouco tempo antes, a cantora havia recebido um pacote
com um besouro. O policial se vê obrigado a aceitar a terrível hipótese de que
está envolvido em um caso marcado pela presença de um serial killer.
Desse ponto em diante, Alberto decide que deve se dedicar ao máximo em
colaborar com a investigação policial e acaba, mesmo que involuntariamente,
afastando Verônica. O estudante de medicina e o inspetor começam a alertar, sem
alarde, os ruivos naturais de Vista Alegre para que se previnam caso recebam o
fatídico embrulho com o besouro. Na verdade, a tarefa é consideravelmente
fácil, pois restaram apenas dois ruivos na cidade: a estonteante Rachel
Saturnino e o Padre Afonso. Há, na verdade, mais um “ruivo natural” na cidade,
e este é a quarta vítima do terrível “inseto” - como passa a ser designado o
criminoso: o pobre galo-da-serra do zoológico. O animal é exterminado e tem
todas as penas de cores flamejantes arrancadas, causando comoção na sociedade.
À
medida que o tempo passa, o cerco se aperta em direção à pensão de Cora O'Shea,
pois tanto o estudante quanto o investigador pressentem que há um vínculo entre
os hóspedes e empregados com a figura do famigerado criminoso. Quando a quinta
vítima, Rachel, sofre um brutal atentado e escapada da morte por mero acaso,
Alberto confronta os moradores da pensão e, para sua insatisfação, todos
possuem álibis. Verônica sente-se extremamente ofendida por ser alvo de
suspeitas e, após comprovada sua inocência, decide viajar, deixando Vista Alegre
– e Alberto – para trás. A onda de crimes finalmente se encerra com a morte de Padre
Afonso, que encontra seu fim nas chamas de sua própria igreja, junto de seu
amigo, Mr. Graz, que estava, aparentemente, se confessando.
Numa
espécie de anticlímax, o investigador e Alberto encerram o caso sem descobrir
quem era o terrível inseto, pois todos os ruivos da cidade foram vitimados e
Rachel, a única sobrevivente, estava tão chocada que não pôde dar detalhes
significativos ao desenvolvimento do caso.
A
conclusão da obra se dá por acaso: muitos anos depois, viajando pela Alemanha,
Alberto conversa com um amigo sobre a mulher de que nunca foi capaz de
esquecer, Verônica, e lhe mostra uma fotografia dela. O homem se sobressalta e
reconhece, junto à moça na foto, o louco foragido Rudolf Bartels. Naquele
momento, Alberto percebe que Mr. Graz era, na verdade, um nome falso que
Bartels utilizava. O agora médico descobre que Bartels, um pesquisador de
renome internacional, fora arruinado por seu colega ruivo e, após matá-lo, teve
uma crise psíquica que gerou uma espécie de dupla personalidade. Quando Mr.
Graz encontrava algum ruivo, seu lado Bartels retornava, transformando-o em um
assassino impiedoso. Alberto fica chocado e compartilha suas descobertas com os
demais envolvidos no caso, incluindo Verônica. O final da obra se dá com o
nascimento do filho de Alberto e de Verônica, oportunamente chamado de “Hugo”,
a primeira vítima do “inseto”.
Alguns
pontos interessantes
Lúcia
Machado de Almeida apresenta uma obra pontuada por elementos significativos:
temos a simbologia do ruivo, dos escaravelhos, da dupla personalidade, do
destino e do aprendiz, entre outras.
Ao
sistematizar uma espécie de luta entre “os ruivos” e “o inseto”, a autora
retoma o motivo mítico do escaravelho e do sol, em que, segundo a wikipedia
os
escaravelhos, com inscrições gravadas na sua carapaça, ou objetos com forma de
escaravelhos, constituíam amuletos muito populares no Antigo Egito. Na
mitologia egípcia, o escaravelho sagrado estava relacionado com deus Khefri,
responsável pelo movimento do sol, arrastando-o pelo horizonte; no crepúsculo,
o sol (ou o deus Rá) morria e ia para o outro mundo (representado pelo oeste);
depois, o escaravelho renovava o sol no amanhecer.
Algumas etimologias egípcias associam ainda
escaravelho à palavra KHEPER, um verbo que envolvia o significado de criar e/ou
transformar, convertendo o escaravelho em uma espécie de símbolo do
renascimento e bastante presente em sepulturas antigas. Desse modo, Bartels, a
“encarnação” do escaravelho, persegue, “move” e “transforma” as pessoas ruivas,
as quais, por sua vez, são representações encarnadas do próprio sol na obra.
Pode-se perceber a ocorrência de várias facetas do “deus Sol” no Escaravelho do
Diabo:
1.
Hugo, o foguinho: pode-se dizer que é o sol
da manhã, rompendo o frio da noite e tornando-se cada vez mais forte e ardente;
2.
Clarence O'Shea: o menino fraco e apagado
pode ser análogo ao sol nublado, sempre obscurecido pela figura de sua mãe ou
do irmão, ou mesmo pelo sol poente;
3.
Maria Fernanda, a cantora lírica, pode ser
entendida como o sol do meio dia, no ápice de seu vigor e força, na posição
central do “palco cósmico celeste”;
4.
Rachel Saturnino encarna a vivacidade do sol
das tardes, o calor das longas horas de modorra emaranhado em seus longos
cabelos até a chegada do ocaso;
5.
O galo-da-serra é uma representação do
próprio nascer do sol, cujas penas flamejantes são análogas aos raios solares
que atravessam o longo espaço cósmico;
6.
Padre Afonso parece atuar como o sol do ser,
ou seja, a iluminação interior, de aspecto espiritual que aproxima o homem das
instâncias celestes.
Reforçando o aspecto de
combate/movimento solar, nota-se que os crimes de Bartels são secretos e
ocorrem nas horas noturnas, longe do “Olho de Rá”, ou seja, do sol. Desse modo,
o escaravelho move “os sóis” pelo espaço celeste do enredo, conduzindo os
personagens ao ocaso completo: sua morte, praticamente inevitável.
Ora a própria questão da dupla
identidade de Bartels/Mr.Graz é a encarnação da duplicidade dia/noite, do ciclo
claro/escuro. Nesse aspecto, Lúcia Machado resgata algo de Stevenson, com seu
“o Médico e o Monstro” em que o pacato Mr. Graz torna-se o diabólico Rudolf
Bartels ao contemplar o ruivo ou vermelho flamejante. O “duplo” de Mr. Graz é
seu reflexo em um espelho moral, uma versão invertida de seu próprio ser gentil
e franzino, ou, antes, uma retomada ao amargor de um Rudolf Bartels, cientista
genial desmoralizado pelo destino. Assim, o real, expresso na figura insana do
cientista, cria a imaginação de um novo eu, o pacato professor de Línguas, e o
gatilho das cores cria o trânsito entre os polos da identidade do atormentado
homem. A infelicidade de Bartels/Mr. Graz está em ser arrastado de sua
imaginação de si mesmo pela realidade, imposta pelas cores. É a situação de que
fala Cristina Martinho[1]
citando Clément Rosset:
Quem
recusa o real, tem seu retorno com juros, em virtude do antigo adágio estóico
segundo o qual “o destino guia aquele que consente e arrasta aquele que
recusa”[...] “Não se escapa ao destino” significa simplesmente que não se
escapa ao real. O que é e não pode não ser. [...] O que existe é sempre
unívoco: na borda do real, seja o acontecimento favorável ou desfavorável, os
duplos se dissipam por encantamento ou maldição.
Frente
às maquinações de Bartels, o estudante Alberto sempre se mostra insuficiente,
perseguindo vestígios de pistas ou meras “sombras e vultos”. Configura-se, nas
sombras, o duelo entre a sanidade do médico aprendiz e o cientista louco, em
que o jovem persegue algo além de sua compreensão. Ora, Alberto, enquanto
estudante pode ser entendido como um aprendiz ou ser cujos conhecimentos
precisam ser apurados e depurados, sobrevivendo às provas que o adversário lhe
impõe. Apenas quando torna-se, de fato e direito, médico, é que Alberto
encontra a solução para a identidade do criminoso, ou seja, quando o iniciante cumpre os ritos e torna-se iniciado nos mistérios da vida e da
morte, tudo passa a ser claro e o rapaz adquire uma espécie de “visão solar” de
todo o mistério, tornando-se ele, Alberto, o próprio sol e renovando a vida com
o retorno, ainda que apenas nominal, da primeira vítima do escaravelho: Hugo.
*Confrade e Mestre em Literatura.
[1] MARTINHO, Cristina. ARTICULAÇÕES DO DUPLO
NA LITERATURA FANTÁSTICA DO SÉCULO XIX. Disponível em:http://www.filologia.org.br/viicnlf/anais/caderno09-04.html
Acesso em 16 set. 2014.
Bom demais para ser verdade, bela história e bela continuidade em tudo sendo que tenho 12 anos e curto muito esses livros. Principalmente da editora Àtica he :D
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