Coloco aqui para a apreciação de todos um texto escrito pelo nosso Confrade Dangelo Muller sobre a obra já discutida "O Maravilhoso Mágico de Oz".
Comentários sobre O Mágico de Oz, de L.F. Baum:
Os jogos do Mágico
Dangelo Müller*
Falar algo sobre o livro “O mágico de Oz” é sempre um desafio: a satisfação de comentar uma das mais interessantes obras de ficção produzida no século XX se depara com o problema da repetição. Parece que a busca por nossa própria estrada de tijolos é o passo inicial na jornada pela terra de Oz.
Escrito no início do século XX, a obra de Lyman Frank Baum conseguiu um feito raro aos nossos dias: tornou-se um elemento cultural, um formador de imaginações. Leitores de todas as idades visitam a fazenda de Tio Henry e Tia Em no Kansas, viajam com Dorothy pela estrada dos tijolos amarelos e voam nas asas dos terríveis macacos alados. A influência de “O mágico de Oz” transbordou os imaginários literários, se manifestando em musicais, peças teatrais, filmes, brinquedos e, não raro, em fanarts que mesclam motivos ocidentais e os mangás japoneses. Sem dúvida, “The woderful wizard of Oz” é um dos livros marcantes do século passado e superou, a muito, o rótulo infanto-juvenil.
Um elemento interessante da obra está justamente em sua estrutura: Baum retoma alguns pontos do estilo narrativo das fábulas e dos contos de fadas de Perrault, Grim e Andersen. Existem princesas, bruxas e reis, mas existem, em paralelo, heróis que se descobrem, a jornada pela terra desconhecida, as situações de desafio e etc, ou seja, ao longo de “O mágico de Oz”, encontramos um enredo que recria o conto de fadas e, algumas vezes, o subverte.
Narrado em terceira pessoa, por uma voz aparentemente adulta e onisciente, a obra segue a estrutura típica dos romances, privilegiando capítulos que funcionam como pontos numa “estrada” mais ampla. Em sua jornada, a pequena Dorothy, não raro, conhece cidades e florestas nas páginas que separam um capítulo de outro, e essa é uma característica de Baum, o qual consegue formular uma geografia interessante e concisa, menos detalhada que aquela posteriormente vista nas obras de J.R.R. Tolkien ou C.S. Lewis. Sob esse aspecto, a questão do espaço onde se desenvolve a trama é bem pontuada: há o Kansas, o deserto e o mundo de Oz. Percebe-se o forte contraponto nas páginas em que o autor apresenta as planícies do estado americano em tons cinza e as terras de Oz totalmente coloridas, com Munchkins e a cor azul predominando no leste, com os Winkies e a cor amarela ao oeste, e Quadlings e o vermelho no sul. Tais povos coloridos são mediados pela Cidade Esmeralda, e protegidos (ou atormentados) por bruxas, cuja cor é o branco. Em relação às cores, é interessante perceber que os sapatinhos vermelhos da Dorothy do cinema (Judy Garland), conste, nunca o foram na obra literária: a menina do Kansas usava os sapatos da falecida bruxa do leste, os quais eram prateados – uma variação do branco consagrado aos elementos mágicos presentes na narrativa.
Além das cores, outro ponto interessante no livro é a dicotomia entre bruxas boas e bruxas más. A simples palavra “bruxa” não é capaz de definir o ser que designa, mas precisa de um complemento para fazer sentido. Dessa forma, Baum apresenta a importância das obras, dos fatos e da experiência sobre os conceitos, algumas vezes, vazios, que só ganham sentido após uma construção de significado. E esse elemento, a construção – simbolizada na jornada – parece estar no âmago de “O mágico de Oz”.
Todo enredo da obra vincula-se à jornada de Dorothy, pois à medida que a menina percorre as longínquas terras em busca de seu lar, ela acaba por construir e significar a realidade que a rodeia. A imagem utilizada pelo autor é emblemática: Dorothy está em uma jornada que transforma o cinza em colorido, o comum em maravilhoso e o velho em novo. O trajeto da personagem é múltiplo: há a viagem horizontal da menina que percorre do leste ao oeste e, voltando vai ao sul, e a viagem vertical do ser humano que busca o conhecimento mais profundo de si mesmo e de seu papel na sociedade. Para essa segunda viagem, os companheiros de Dorothy são ainda mais importantes.
Este inusitado quarteto, formado por uma menina, um espantalho, um homem de lata e um leão, já causa curiosidade por sua composição heterogênea. Alguns críticos vinculam essa diversidade, e a própria construção da obra de Baum, a uma alegoria política, tratando dos preceitos da política monetária do populismo. Preconizando a valorização da prata sobre o ouro, assim como a caracterização do fazendeiro americano enquanto o espantalho, do operário como o homem de lata e dos políticos em voga enquanto o leão covarde, conforme se pode observar no artigo escrito em 1964 por H. Littlefield: "The Wizard of Oz: Parable on Populism”, os personagens seriam metáforas, ou alegorias, do povo americano em seu ecletismo.
Outros artigos apresentam “O mágico de Oz” como uma obra marcada pela influência da teosofia, misto de filosofia e religião, que contava com a simpatia de Baum. Sob esse aspecto, a figura do Mágico Charlatão é pontual e revela uma crítica mordaz à crença sustentada por manipulações e ilusões. As tantas formas do Mágico escondem a terrível verdade de que seu poder é um elemento imaginário, que necessita de uma atmosfera especial para existir. Ora, como explicar que um ventríloquo circense – a real ocupação do mágico – possa ter ordenado a construção da maravilhosa Cidade Esmeralda, se não por meio de “poderes especiais e secretos”? Sua sagacidade e dissimulação são, na verdade, seus únicos dotes “mágicos”.
Deixando a crítica que se embasa na vida de Baum um pouco de lado, e seguindo os preceitos que instituem o texto como objeto privilegiado de análise e capaz de diálogo com o leitor, percebe-se a riqueza dos símbolos e imagens presentes na obra. Há um jogo antitético no quarteto de Oz: palha e metal, coragem e medo.
Toda leveza, maciez e maleabilidade do Espantalho são contrapostas à solidez brilhante e metálica do Homem de Lata. O temor do Espantalho é o fogo, capaz de consumi-lo em poucos segundos, enquanto o medo do Homem de Lata é a água, capaz de enferrujá-lo para sempre. O ataque dos macacos alados ao quarteto é exemplar sob esse aspecto: enquanto o Espantalho se desfaz em todas as direções, com sua palha levada pelo vento, o Homem de Lata é arremessado às rochas, tendo seu corpo destruído pelo choque e conseqüentes batidas no penhasco. O que une esses personagens tão díspares é o seu reparo: a palha é posta de volta e costurada pela mão do artesão, enquanto o metal é restaurado pelas mãos dos mestres ferreiros.
Dorothy e o Leão, por sua vez, são uma dualidade mais sutil que aquela vista entre o lenhador e o espantalho. A menina e a fera são caracterizadas pelo jogo entre interno e externo, entre vontade e medo. Dorothy Gale é o avatar da vontade na obra, sua decisão em prosseguir com a jornada, mesmo após as várias adversidades, é o “fio condutor” central da trama. A interação da menina com os mais diversos elementos pontua seu aspecto extrovertido, deixando ao leitor a imagem de um personagem capaz de se conectar aos demais. O leão, diferentemente, esconde-se em sombras e ecos, preferindo ocultar-se – o comportamento oposto ao esperado do “rei das feras”. E aqui se percebe que a palavra “expectativa” é de suma importância: o jogo entre Dorothy Gale e o Leão é uma rica combinação entre a coragem e a esperança frutificadas pelo autoconhecimento. Pode-se notar que o Leão torna-se mais próximo de Dorothy e assume partes de seu caráter, como tão bem se observa no trecho em que a Bruxa Má do Oeste tenta transformá-lo em sua montaria particular. O Leão, até então julgando-se medroso, começa a resistir – um dos primeiros passos para sua autoafirmação. É o equilíbrio entre a expectativa e a prudência que matiza os tons entre esses dois personagens fascinantes.
Há muito que falar sobre tal texto, e parece que sua riqueza só tende a aumentar a cada nova leitura. Desse modo, o “desafio”, citado no parágrafo inicial, continua válido, mas com o “facilitador” de que nossa estrada de tijolos amarelos transcende as páginas da obra, as classificações de gênero e mesmo os paradigmas de uma ou outra corrente ideológica. Falar sobre “O mágico de Oz” ainda é desafiador, mas igualmente gratificante.